Eu a via como um ser diferente, a parte desse mundo obscuro onde somos obrigados a vagar por entre ruas e avenidas, afogando-se na mesa de um bar tentando escapar do óbvio à custa do previsível.
Ela era uma alma errante, buscando qualquer coisa que a tornasse edificante, sem se importar na verdade, com tudo que aos olhos de todos, parecesse importante.
Eu a queria por perto. Tinha a louca necessidade de alimentar-me das fraquezas dela. Havia em sua angustia disfarçada, uma luz contida, quase engarrafada nas lentes do seu olhar. E isso quase me cegava. Era algo guardado, revelado em oração, uma oração solitária, perdida em um circulo composto por seu corpo trêmulo de receios e suas tantas outras faces que viviam, amavam, e pecavam sem nenhum rodeio.
Ao passar pelas ruas, dedos em riste eram flechas de acusações... E ela sorria! Sentia-se livre, diferente dos demais, e sabia que em suas transgressões pecaminosas, era quase santo ser livre pra viver assim.
Muito se pensava saber sobre a vida dela, mas as pessoas confundem-se ao pensar que conhecer seus passos, seria o mesmo que revelar o conteúdo de sua alma. Seus sentimentos e emoções eram uma incógnita. Menos pra mim. Eu conhecia suas razões, eu sofria com suas buscas sem fim, eu estava lá... Ela era uma parte muito profunda de mim. Mas ela era a alegria de viver, enquanto eu era apenas um rosto triste na janela que nunca mostrou a ponta do dedo quando ela passava. Enquanto alguns a julgavam, eu a idolatrava. Talvez por que nunca soube ser livre assim.
Mas em algum momento, houve um descuido, um engano, uma placa errada na contramão. Os ventos a giraram talvez! Um caminho escolhido por não perceber a existência de outra direção. Ela sentia que alguma coisa não estava em seu devido lugar, mas acostumada a arriscar, seguiu o cheiro de uma nova emoção. Eu pude vê-la até o inicio daquele percurso, mas ela desapareceu no horizonte e por mais que tenha tentado, não a pude mais com os meus olhos alcançar.
Muito se fala por aqui. Alguns dizem que se perdeu no caminho e deve mesmo ter se transformado em mais uma vitima da cruel sociedade. Outros acreditam que possa ter criado juízo e ter virado mulher direita.
Quanto a mim, lembro daquela querida com uma saudade que me arranca a emoção e me leva as lágrimas. Sua essência virou tatuagem em meu olhar. Eu a queria perto de mim porque a coragem dela me despertava inveja, me encantava e me iludia. Prefiro acreditar que conseguiu.... Conseguiu novas emoções, grandes histórias e que ainda faz muito marmanjo rogar a Deus para prendê-la em seus corações. Coisa que julgo utopia. Ainda lembro do seu sorriso generoso, tão contagioso que eu nem precisava saber do que se tratava... Eu apenas sorria junto. Ela sabia meu nome, e às vezes, fingia ser eu. Sorria... Na verdade, ela gargalhava com a possibilidade de se ver tão fora de si, tão diferente do que a fazia feliz. Em muitos de seus momentos, eu fui apenas um rosto infeliz na janela. Pra minha alegria deprimente, nunca precisei lidar com os erros dela, e pra minha tristeza, provavelmente, também nunca irei descobrir o que a deixava tão radiante.
Continuo aqui na mesma janela, e já não há nada de tão interessante pra ser visto há muito tempo. Apenas as vidas de sempre dentro de sua repetitiva, correta e limitada visão. Porém feliz... É o que dizem. Só sei de mim. Mas ela deve saber do mundo! Nos meus momentos nostálgicos, quando lembro da sensação de me imaginar livre como ela, me encontro angustiada, pedindo por uma certeza de seus passos já sem rastros pra mim.Ah, saudosa parte de mim, dê-me ao menos o prazer de crer que tudo valeu pena e que ainda és feliz. Deixe-me saber que tua vida foi, é, e será tudo o que você sempre quis.
Gil Façanha